Na mitologia grega, o destino nem sempre é gentil com os amantes. Muitas das histórias de amor mais famosas no mundo dos mitos acabam em total desgraça. Moira, a deusa do destino - uma das filhas de Nyx, a Noite -, era uma divindade mais antiga e mais poderosa que o próprio Olimpo: ninguém contestava as suas decisões e nem mesmo Zeus podia contrariá-la. Além de potente, Moira era misteriosa e indecifrável. "Os antigos gregos acreditavam que as fatalidades e os sofrimentos eram inevitáveis e podiam se abater sobre qualquer um. O que realmente importava era a forma como o ser humano se comportava diante das dores da vida", explica Viktor Salis, especialista em fenomenologia dos mitos pela Universidade de Sorbonne, na França, e autor de livros como Mitologia Viva (Nova Alexandria, 2011).
Medeia e
Jasão
Ela era a neta
do Sol e a favorita das trevas. Ele era um príncipe sem trono, em busca de glória
nos confins do mundo. O amor entre ambos foi um dos mais intensos em toda a
mitologia grega - e também um dos mais sangrentos.
O encontro
aconteceu nas profundezas de um bosque escuro, junto a um altar de Hécate, a
temível deusa das bruxas. Achando estar sozinha, a princesa Medeia acabava de
fazer uma oferenda à sombria divindade. Filha de Aetes, rei da Cólquida, e neta
de Hélios, o deus do Sol, Medeia era uma das feiticeiras mais poderosas do
mundo antigo. Entre seus poderes, estava o dom de falar com os animais, acalmar
ou invocar tempestades e erguer ondas gigantes no mar.
Medeia escutou
um ruído entre os arbustos e voltou o rosto. Por um instante, a altiva
feiticeira ficou sem palavras. Um rapaz de físico perfeito a observava. Tinha
cabelos compridos, duas espadas na cinta, e uma pele de leopardo amarrada ao
redor do corpo. Imediatamente, Medeia sentiu que seu destino estava ligado para
sempre àquele homem. Estava terrivelmente apaixonada.
O jovem herói
lançou-se aos pés da bela bruxa. Contou sua história - e implorou ajuda.
Chamava-se Jasão e era filho de Éson, o rei destronado da cidade de Iolcos, na
Tessália. O trono fora roubado pelo irmão de Éson, o inescrupuloso Pélias.
Quando Jasão, o legítimo herdeiro, exigiu o que lhe era devido, o usurpador lhe
respondeu com um desafio aparentemente impossível: "Eu lhe darei o trono
de Iolcos quando você me trouxer o Velocino de Ouro".
O Velocino era
um artefato feito com a lã do fabuloso Carneiro Dourado. Filho de Poseidon e da
mortal Teofane, a mágica criatura tinha inteligência humana e voava como um
pássaro. Após sua morte, virou a constelação de Áries. Com sua lã dourada, foi
confeccionado um manto belíssimo e refulgente, que se tornou um dos tesouros
mais cobiçados do mundo mitológico. O mirabolante prêmio estava guardado em um
jardim no palácio de Aetes - pai de Medeia -, sob a mirada infalível de um
dragão de escamas verdes, que jamais dormia.
Para cumprir o
desafio, Jasão reuniu uma tropa com os 50 maiores heróis gregos da época. E
embarcou no Argos, o maior e mais famoso navio dos tempos míticos. Entre os
tripulantes do Argos - chamados de Argonautas - estavam o músico e poeta Orfeu
(protagonista de outra história de amor trágico, como você pode ver no box da
página 63); Héracles, o maior dos mortais; o príncipe Meléagro, da Calidônia; e
a princesa-guerreira Atalanta, da Arcádia. E lá se foram os Argonautas em
direção à distante Cólquida, onde hoje fica a região do Cáucaso.
Mas a
tripulação heroica não era o maior trunfo de Jasão. Antes de começar a jornada,
ele havia feito um sacrifício em um templo de Afrodite, suplicando sua ajuda. A
deusa do amor decidiu proteger e auxiliar o herói na busca pelo Velocino. Por
isso, Medeia se apaixonou à primeira vista: era o poder de Afrodite agindo
sobre ela. Em frente ao altar de Hécate, os dois jovens se beijaram e fizeram
amor. Em seguida, Jasão prometeu casar-se com Medeia. Dominada pela paixão, ela
decidiu abandonar pátria e família, e passar o resto da vida com aquele homem
que acabara de conhecer. A princesa entregou ao amante um frasco negro,
contendo uma poção feita com as águas do Letes, um dos rios que corriam no
inferno. Algumas poucas gotas foram o suficiente para fazer o terrível dragão
insone adormecer. Jasão rapidamente apanhou o artefato de lã dourada e, naquele
mesmo dia, o Argos zarpava de volta à Grécia.
Medeia prestes
a assassinar seus filhos.Nem bem chegaram lá, contudo, aquele amor cheio de
proezas começou a mergulhar nas trevas. Mesmo após a conquista do Velocino,
Jasão não conseguiu o trono que desejava. O povo de Iolcos desconfiava dele -
não por ser um estrangeiro, mas por ter se casado com uma feiticeira. Os
Argonautas se dispersaram pela Grécia e Jasão, ainda sem trono, foi viver em
Corinto - o rei da cidade, Creonte, era seu amigo. Jasão ainda amava Medeia, e
já tivera com ela dois filhos, Mêrmeros e Feres. Mas sua ambição política foi
maior que a paixão. Quando Creonte lhe ofereceu a mão de sua filha Creúsa - e
um posto no governo da cidade -, Jasão decidiu que era tempo de se separar de
sua companheira de aventuras: ordenou que Medeia fosse embora e renegou os
próprios filhos.
Medeia fingiu
aceitar a rejeição: mostrou-se dócil e chegou a oferecer a Creúsa um belo
vestido de casamento. Mas uma seguidora de Hécate jamais deixa uma ofensa
passar em branco. No dia do casamento, ao colocar o vestido sobre o corpo,
Creúsa soltou um grito de horror: o tecido grudou-se em sua pele e se
transformou em fogo. Horrorizado, Jasão viu a noiva se transformar em uma chama
viva. De espada desembainhada, correu até a casa onde Medeia vivia com os
filhos. Mas, ao chegar lá, deparou-se com uma imagem além do pesadelo mais
cruel - uma das cenas mais brutais que a mitologia grega nos legou. Coberta de
sangue, Medeia segurava nos braços os corpos degolados de Mêrmeros e Feres -
que ela mesma havia matado.
Um clarão
ofuscou os olhos perplexos de Jasão: era a carruagem de Hélios, o Sol, que
viera buscar sua neta. Com os corpos dos filhos, a feiticeira subiu aos céus.
"Contempla os filhos que eu mesmo apunhalei, para destroçar teu
coração!" gritou Medeia. "E tuas desgraças não estão completas,
Jasão: espera até chegar tua velhice". A profecia de Medeia se cumpriu.
Depois de vagar pela Grécia durante anos, Jasão morreu amargurado, velho e
sozinho, deitado sobre as areias de uma praia.
Por Geraldo Genetto Pereira
Professor, escritor, blogueiro, youtuber.
Formação: Licenciatura e Mestre em Letras pela UFMG.
Nenhum comentário:
Postar um comentário